Apesar de cada vez mais presente no nosso mundo em crescente globalização, o bilinguismo é ainda um conceito pouco esclarecido. Ideias corretas e erradas circulam por aí e, como linguista e mulher expatriada, me sinto responsável por compartilhar conhecimentos sobre esse e outros assuntos com vocês.
Espero que este texto lhe seja útil e que, ao final da leitura, você se sinta ainda mais preparada para lidar com esse contexto vivido por você e pela sua família no exterior. Vamos, então, entender melhor o bilinguismo e quebrar os mitos?
Afinal, quem é considerado bilíngue? Apenas quem fala perfeitamente duas línguas?
A definição do bilinguismo foi sempre um assunto polêmico. Enquanto Macnamara (1967) definiu bilíngues como “aqueles que possuem pelo menos uma das habilidades linguísticas (ouvir, falar, ler e escrever) em uma segunda língua, mesmo que a um grau mínimo”, Oestreicher (1974) considerava bilíngues “somente aqueles cujo domínio das duas línguas é completo, sem qualquer interferência entre os dois processos linguísticos”.
De fato, não há consenso entre os autores sobre esse conceito. O que eu penso ser essencial é que a gente considere os diferentes níveis de competência linguística dos bilíngues, ou seja, os diferentes estágios de proficiência, assim como a imensa diversidade entre os falantes de duas línguas, cujas habilidades serão determinadas por uma infinidade de fatores intra- e extralinguísticos.
Nesse sentido, acho importante a gente pensar no bilinguismo como algo que está em constante construção e não como um produto pronto, acabado. Cada falante terá habilidades diferentes em cada língua, de acordo com sua própria história de vida, seus contextos de convivência, entre outros fatores.
Assim, respeitar a diversidade envolvida nesses contextos é entender, por exemplo, que pode ser problemático comparar um bilíngue a um monolíngue. Um bilíngue não é dois monolíngues em uma mesma pessoa. As habilidades em uma língua serão sempre diferentes das habilidades na outra língua.
Ou seja, se uma criança, filha de mãe brasileira e pai alemão, sabe mais palavras em alemão sobre automóveis do que em português e mais palavras em português sobre partes do corpo do que em alemão, significa que ela não está adquirindo completamente as duas línguas? De jeito nenhum. Significa apenas que as brincadeiras com o papai envolvem carrinhos, caminhões e tratores e que o banho é um momento vivido geralmente com a mamãe.
Mas e o bebê que ouve duas línguas desde que nasceu? Isso não pode causar confusão?
Da mesma forma, não poderia estar mais equivocada a ideia de que o contato com duas línguas desde o nascimento pode, em algum momento, prejudicar o desenvolvimento linguístico da criança e, como consequência, ela pode acabar não adquirindo bem uma das línguas ou até mesmo ambas.
Diversos estudos – Flores & Melo-Pfeifer (2016); Gathercole (2007); Gathercole & Thomas (2009), para citar alguns – já demonstraram que nada de inadequado acontece quando a mente entra em contato com duas línguas desde o nascimento. Pelo contrário: as vantagens são várias. Mas isso é assunto para textos futuros, que eu espero poder compartilhar com vocês.
O que pode acontecer durante o desenvolvimento do bilinguismo e que, muito frequentemente, preocupa os pais é uma demora um pouco maior por parte da criança bilíngue para chegar ao mesmo estágio de aquisição de uma criança monolíngue. Às vezes, seu sobrinho, que mora no Brasil e convive com apenas uma língua, fala mais cedo e usa uma variedade maior de palavras do que seu filho bilíngue, da mesma idade. Mas isso tem explicação.
Por que isso pode ocorrer?
As interações sociais da criança bilíngue estão “divididas” entre duas línguas. Desse modo, ela não ouve 100% do tempo uma mesma língua. Uma vez que a aquisição depende da quantidade de exposição, é esperado que seja necessário um pouco mais de tempo até que ela tenha conseguido acumular uma certa quantidade de exposição em cada uma de suas duas línguas. Mas, quando ela chegar lá, vai ter valido (muito!) a pena: ela chegará com duas línguas.
O segredo é seguir em frente! E se informar
Por isso, não desista do bilinguismo! E, principalmente, quando surgirem dúvidas e inseguranças, procure por profissionais da área, por pessoas que tenham estudado/pesquisado a respeito. Através deste link, você pode ter acesso a mais textos dedicados a este tema e esclarecer dúvidas sobre outros mitos. Não deixe de se informar. O caminho do bilinguismo é desafiador, mas a recompensa não tem preço.
FLORES, C.; MELO-PFEIFER, S. “Em Casa Mais Português, mas também Alemão”: Perspectivas da Linguística e da Didática de Línguas sobre Narrativas de Uso da Língua de Herança. In: MELO-PFEIFER, S. (ed.) Didática do Português Língua de Herança. Lisboa: LIDEL, 2016.
GATHERCOLE, V. Language transmission in bilingual families in Wales. Cardiff: Welsh Language Board, 2007.
______. & THOMAS, E. M. Bilingual first-language development: Dominant language takeover, threatened minority language take-up. Bilingualism: Language and Cognition, 12, 2009. (p. 213-237).
MACNAMARA, J. Problems of bilingualism. Journal of Social Issues. Special Issue 23, 1967.
OESTREICHER, J. P. The early teaching of a modern language. In: Review of the Council for Cultural Cooperation of the Council of Europe 24, 1974. (pp. 9-16)
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Linguista, pesquisadora e professora, Priscilla é apaixonada por línguas, livros e não dispensa um bom café. Concluiu seu doutorado em 2019 e mora, desde 2018, em Zurique com o marido, o “culpado” por sua mudança para a Suíça. Adora escrever sobre bilinguismo, questões identitárias e diferenças culturais. Crianças, cachorros e pinguins são algumas de suas outras paixões.