Era sábado, onze e meia da manhã , de mais um dia de quarentena, no final de maio. Lá fora, ardia uns 38 graus Celsius na sombra. Se olhássemos a cidade, lá de cima, de um avião, veríamos um grande mar de deserto. Portanto, a minha casa apareceria no meio de outras casas, junto a um amontoado de árvores, lagos e areia na maior parte, formando um retrato de cor marrom.
Do avião, pensaríamos como seria possível viver num lugar desértico: cozinhar, trabalhar, estudar, andar pelas ruas – mesmo trancados em casa com o ar-condicionado ligado o dia inteiro, a vida acontece.
Um pouco cansada, eu estava, por conta da limpeza que tinha acabado de fazer na casa inteira (a faxineira faltava por conta da quarentena), mas mesmo assim, um alívio: tudo brilhando e um cheirinho bom de limpeza no ar. Próxima etapa, colocar o avental e elaborar o almoço do dia.
Logo depois, abri a geladeira, vasculhei cada compartimento e, fui tirando todos os vegetais, sem saber direito o que iria fazer. No congelador, um pacote de um quilo de camarão pré-cozido, sem casca e congelado.
Quem quer camarão?
Bingo! Naquele exato momento uma receita prática e rápida se criava na minha cabeça: camarões e vegetais refogados acompanhados com um arroz basmati selvagem. Meus olhinhos se animaram. Uma opção leve, saudável, o que agradaria ao marido que não queria cheiro de fritura pela casa totalmente lacrada e também, a filha mais velha, que não come carne vermelha.
Um menu, com qualquer fruto do mar, por mais simples que seja, faz a refeição ficar com gosto de dia especial. E não deixaria de ser, estávamos todos juntos, e com saúde, em tempos de uma pandemia surreal. Contudo, dia de celebrar a vida em família, e posteriormente agradecer ao Universo por isso. Então, também descobri duas palavras que combinam juntas: confinamento e culinária.
A bojuda panela de bambu
Voltando à cozinha, vegetais cortados em cubos, cebolas fatiadas, alhos descascados, gengibre em tiras, espinafre e tomates lavados – tudo com um só destino: ir para a panela juntamente com o camarão. Quando fui pegar a caçarola dentro do armário, me deparei com uma panela oriental feita de bambu, que tinha há anos e só usado poucas vezes.
De repente, me deu um clique, e trouxe a bojuda para o fogão. Decidi fazer tudo no vapor, comida mais saudável, impossível! E assim, a receita mudaria de nome, agora: camarões e vegetais no bafo com arroz selvagem.
Alquimia e Clarice
A alquimia começava lentamente pelo vapor, cozinhando o gengibre, crustáceos, alho, coentro e vegetais. O cheiro de comida fresca, e nutritiva se espalhava pelos cômodos da casa alugada, que habito. Essa é a minha sexta de casa de expatriada, em Dubai. Um cantinho de conforto, onde o gosto de pela culinária vem se acentuando, durante esse confinamento em meio às perguntas sem respostas, medos bobos e enfados diários.
Minutos depois, tudo quentinho e colorido, saindo direto para os pratos de cada um. E para finalizar, um molho especial, com gergelim banhava delicadamente os camarões, junto com pitadas de pimenta-do-reino e sal. O tempo passou e aquele cansaço inicial, se foi.
Nossa emblemática Clarice Lispector nos escreveu: “A escrita salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende ao menos que se escrever.” Acrescentaria às suas palavras que cozinhar, também salva, assim como a escrita. São atividades solitárias, porém libertadoras.
Cozinhar é um bem querer consigo e com quem se ama. Escolher e elaborar os alimentos, dia após dia é uma doação. Em suma, é um ato nobre carregado de amor.
Não precisa ser nada sofisticado, basta ter bons ingredientes, aprender a combiná-los, e além disso, ter uma boa dose de vontade e carinho ao manejar, o que vai dentro de cada panela. Cozinhar com as mãos leves, e um coração alegre, são ingredientes indispensáveis.
Aprendi a cozinhar com a sogra
Dorinha me serviu de inspiração durante esses trezes anos, quando ela saia do Brasil e vinha para minha casa de mãe expatriada, ajudar com as crianças, e cozinhar enquanto eu trabalhava fora.
Por certo, o amor que ela transmitia, enquanto manipulava os alimentos, contagiava a casa e, eu por consequência, aprendia sem saber, o quê combinava com o quê, bem como os diferentes sabores.
Ela sempre dizia, enquanto socava o alho com sal no pilão: “não sei porque mais se eu não amasso o sal junto com o alho o tempero não fica bom”. E é pura verdade, não fica não Dorinha! De fato, passei a fazer o mesmo.
Confinamento e culinária: Eu cozinho, nós cozinhamos
Sem dúvida, cozinhar é essencial, e todos precisamos de alguém para colocar a mão na massa, e fazer a magia acontecer entre os alimentos. É da panela para o prato, que a missão de amor se completa.
Enfim, dedico essas palavras à toda mulher que deseja cozinhar, mas acha que não leva jeito, à que cozinha mesmo sem gostar, àquela que chega tarde da noite e vai para as panelas, à que não vive sem cozinhar e principalmente à que está deixando o vento levar os seus sonhos – peço à ela gentilmente que comece já a segurá-los fortemente, dentro ou fora da cozinha. Além disso, dedique um tempo do período de confinamento para a culinária, você não vai se arrepender.
Motivos para aprender a cozinhar. Saiba mais
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Passou pelo Canadá e Bahrein antes de firmar residência em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Escreve também literatura infantil, haicais e contos. É autora do “O Jardim da Lua” (finalista do Prêmio Jabuti 2022 na categoria ilustração) da editora Tigrito.
“Sarah & The Pink Dolphin” é seu primeiro livro bilíngue (inglês e árabe) publicado pela Nour Publishing.
Participou do Festival de Literatura da Emirates Airline em 2019 com o livro: “Pepa e Keca em Quem viu rimas por aí?”.
Atualmente cursa a pós-graduação “O livro para a Infância: processos de criação, circulação, mediação contemporâneos” na A Casa Tombada. É parceira do clube de assinatura de livros infantis, A Taba, nos Emirados.