Tomei emprestado, para o título do meu artigo, a frase que é capa do livro de Margo Glantz, romancista mexicana. Lembro que comprei este livro “E por olhar tudo, nada via” numa das primeiras viagens depois que voltamos a morar no Brasil. Quem volta quer mostrar para os filhos expatriados tudo que o Brasil tem! Haja paciência com esses pais ansiosos! Nossos filhos precisam aprender a ler e a escrever em português, estudar a história e a geografia do país. Além disso, têm que fazer passeio aos museus, têm que conhecer cidades históricas e visitar os desconhecidos para reconhecê-los como família. Esse é só um pedacinho do roteiro da repatriação. Coisa doida de viver!
Foi por um desses motivos que estávamos em Ouro Preto, berço histórico mineiro, quando o encontrei numa livraria: “E por olhar tudo nada via.” Corri, como faço sempre que me interesso por um livro e percebo que tem alguém por perto para disputá-lo. Fui atraída pela frase estampada na capa, cuja autora eu desconhecia. Apenas sabia que aquela não era a autora da frase original.
A sentença completa é “E por olhar tudo nada via, nem discernir podia” versos de Sor Juana Inés de La Cruz. Freira e poeta mexicana, lutou para ter seu espaço de conhecimento e escrita na sociedade do sec. XVII. Agora a frase foi republicada e, não sem mérito, também por uma mulher, a poeta e escritora Margo Glantz. Soube depois que ela tem um livro sobre a freira mexicana.
Enigma ou isca: e por olhar tudo…
Bem, voltando à minha reflexão tema do artigo, guardo essa frase comigo. Mesmo sem ter terminado de ler o livro de Margo, deixo-o ao alcance dos olhos porque gosto da sentença. E penso: de qual enigma estamos falando? Ver tudo o quê, discernir o quê? Juana Inês filosofou profundamente sobre isso, mas em relação aos seus conflitos e à sua época. Já Margo expressou seu descontentamento com o volume insano do fluxo de informações nos dias de hoje. Mas e eu…por que será que ainda estou agarrada a essa frase?
Percebo-a assim como uma isca que se sacode para um peixe faminto. Passados três anos desse retorno ao Brasil, entre cidades históricas, feijão com arroz, política, miséria, belezas, família e muitas sessões de terapia, decido que vou morder essa isca.
Estava atravessando a rua de um bairro carioca, observando a rotina dos transeuntes. Gosto de olhar o vai e vem das pessoas. Seus hábitos, imaginar seus pensamentos. A problemática do dia. Afinal, cada um tem a sua. E foi então que percebi que não estava mais encontrando tantos pedintes nas calçadas do supermercado. Mas bastou só pensar, e lá estava o moço! Arrumadinho, sentado sobre uns farrapos, sacolinha do mercado aberta e vazia.
Na hora, lembrei de uma das sessões com a terapeuta – santa terapia! – em que ela me perguntava “o que é tão desafiador nessa volta ao Brasil?” Assim, como quem quer se livrar rapidamente da pergunta, eu disse: “Não suporto a miséria nas calçadas”.
Reflexos de tempos difíceis
Estávamos no ano pós-pandemia e o estrago econômico era lastimável. Desempregados, drogados, abandonados. Isso me doía demais, e até hoje dói. Fugi algumas vezes da tarefa de ir ao mercado. Fazia compras on-line só para evitar aqueles encontros dolorosos. Covardia, talvez.
A pergunta veio de supetão: “Mas Patrícia, qual é a miséria em você para a qual você não quer olhar?”
Diante desta, emudeci! É claro que isso é profundo, e se quiséssemos ficaríamos aqui horas falando sobre esses espelhos – que muitas vezes temos dificuldade em confrontar. Tudo o que incomoda no outro tem reflexos nossos. Confrontos importantes! Contudo, esse foi só um exemplo dos muitos questionamentos e estranhamentos que fui passando – e ainda passo – por aqui nesta repatriação.
Mas sem perdermos o fio da meada, quando olhei aquele moço, sentado sobre uns farrapos, sacolinha do mercado aberta e vazia, me lembrei da tal sessão terapêutica. E agora o que faço?! Olho para ele, entro correndo no mercado ou desisto desse caminho? Mas, e o espelho? Será que já estou pronta para olhar? Enfrentei. Olhei nos olhos, falei com ele e fui buscar alguma coisa para ajudar na sacola.
Percepções pós-terapia
Voltei contente, mas com algo que não era fruto da ação da caridade, que tão bem nos faz. Foi certamente da capacidade de ter enfrentado e de perceber que aquilo não me paralisava mais. E que também já não servia mais de desculpa para eu não me readaptar no Brasil. Percebi também que aquele sentimento falava mais de mim do que da miséria do outro. Ou seja, a minha inadequação naquele período na cidade vinha de um estado íntimo, que em algum momento viria à tona. No Brasil ou em outro país.
Assim, comecei a perceber que uma ponta de adaptação já estava em mim. Mas por que antes não via, não sabia e nem discernir podia? Talvez porque estivesse como Margo, mergulhada no barulho ensurdecedor das vias. Algumas vezes, é preciso silenciar. Trabalhar firme no autoconhecimento, buscar ajuda e se esforçar para o reencontro consigo mesmo. A vida pede.
Enxergando melhor os fatos
Há verdades a serem constatadas: A primeira, é que ainda estou vivendo os sintomas de uma repatriação. Após quinze anos no exterior, passei por esses três anos buscando olhar tudo, reparar tudo, aprender tudo – novamente! E é por isso que nada via. Ou então de tudo via um pouco e me contorcia na readaptação. Violentando meus sentimentos, meus estranhamentos. Assustada por não me adaptar. Apavorada por ter que ficar. Culpando a cidade lá fora, enquanto a turbulência é aqui do íntimo.
A segunda, é que não há analogia possível quando você tem dois cenários e culturas estranhamente tão diferentes. Injusta comparação! Em todos os ciclos da vida há coisas boas e outras nem tanto. Enquanto a feijoada do sábado no boteco da esquina é imperdível na companhia da família, o sabor da berinjela defumada com tahine fazia salivar a boca. Enquanto as estradas rodeadas pelo verde intenso da mata fechada me deixam maravilhada, o movimento das areias do deserto me divertia muito, com a paisagem que ia se transformando de brisa em brisa.
Constatações
Outro dia estava na aula de pilates e, entre um exercício e outro, meus pensamentos se confundiram e achei que ao sair dali passaria no Spineys e tomaria um café no Costa. Ah, como eu gostava disso em Dubai! Mas não achei ruim quando meus pensamentos foram interrompidos pela senhorinha que esperava o sinal fechar para atravessar, e contemplando o céu me disse: “Hoje vai chover!”
Sabe quando eu ouviria isso em Dubai? Só quem mora lá responde. Adoro ver as nuvens chegando para formar as chuvas. E o cheiro da terra molhada? E nessa reflexão contemplativa fui me dando conta de que isso aqui também é bom! Viver aqui, ali, ou acolá, é sempre extraordinário, desde que eu esteja bem comigo mesma.
E assim nesse sentimento, a gente abraça o processo de repatriação, sentindo que os pés têm raiz, mas o coração tem asas para o mundo!
Sou Patrícia Farias, brasileira, repatriada após uma longa experiência em Dubai. Jornalista com especialização em cultura teológica, no Oriente Médio me dediquei à coordenação de trabalhos sociais, e de educação filosófica e religiosa.
De volta ao Brasil, retomei os projetos na Interseção Design de Histórias, onde no último ano inauguramos o selo de editora independente.
Redescobrir-se na profissão, no Brasil ou mundo a fora, é um caminho saudável para todos nós. Aguçar a escuta para o novo, ter um desejo genuíno de apreender e de se transformar. É um processo bem bonito, não desista!
Saiba mais em: http://intersecao.com.br | @intersecaoedicoes |@patricia.dxb